Entenda a dinâmica de uma infecção viral: as fases de latência, incubação, transmissão e convalescença.
Descubra como isso afeta o período de isolamento e diagnóstico da Covid-19.
A pandemia de Covid-19 chegou ao fim, mas muita gente ainda tem dúvida a respeito das diferentes fases da infecção pelo Sars-CoV-2. Aprenda aqui como essas fases afetam o período de isolamento e determinam o melhor momento para detectar o vírus pelos exames de RT-PCR e Sorologia.
As diferentes fases de uma infecção viral
Uma doença infecciosa tem início quando um agente patogênico (ou patógeno) é transmitido de um hospedeiro para o outro (ex. um vírus ou uma bactéria).
O sucesso do patógeno em estabelecer uma infecção depende primeiramente de dois fatores: (1) ele deverá superar ou evadir a resposta imune do novo hospedeiro; e (2) ele deverá alcançar os tecidos (conjunto de células especializadas em alguma função) aos quais ele está melhor adaptado para se multiplicar.
Enquanto ambas essas condições não são satisfeitas, o patógeno permanece em sua fase de latência. Essa fase corresponde ao período entre o início da infecção e momento onde o hospedeiro torna-se infeccioso; isto é, o momento a partir do qual ele é capaz de transmitir o patógeno para novos hospedeiros.
Não por acaso, o fim da fase de latência coincide com o início da fase de transmissão (Figura 1), também chamada de fase infecciosa ou de contágio. Durante os primeiros dias da fase de transmissão, a probabilidade de infectar um novo hospedeiro é menor e vai aumentando conforme o vírus se multiplica e aumenta a carga viral do hospedeiro primário (Figura 1).
Quando o patógeno se torna suficientemente numeroso a ponto de causar danos aos tecidos do hospedeiro, este passa a apresentar os primeiros sintomas da doença. O intervalo entre o início da infecção e a primeira manifestação de sintomas é chamado de fase de incubação (Figura 1).
Dependendo do patógeno, a fase de incubação pode coincidir exatamente com a fase de latência ou ser comparativamente mais curta (isto é, os sintomas aparecem antes mesmo da doença ser transmissível, como no caso da varíola).
No caso da Covid-19, a fase de incubação é maior que a fase de latência, o que significa que o hospedeiro pode transmitir o vírus antes mesmo dos primeiros sintomas surgirem, dando origem às infecções pré-sintomáticas (Figura 1).
Especificamente, a fase de incubação do Sars-CoV-2 dura de 2–14 dias, sendo que na maioria das pessoas esse período é de 5–6 dias após o início da infecção. Ou seja, os primeiros sintomas da Covid-19 costumam se manifestar em até uma semana após o início da infecção.
A fase de incubação tem essa variação por depender de três fatores: (1) tamanho da carga viral recebida no início da infecção; (2) resposta imune do novo hospedeiro; e (3) o órgão que foi primeiramente atingido pelo vírus.
Já a fase de latência da Covid-19 termina cerca de 5 dias antes dos primeiros sintomas surgirem, o que significa dizer que na maioria das pessoas (cuja fase de incubação dura 5–6 dias) essa fase dura no máximo 1 dia (ou seja, a transmissão começa quase que concomitantemente com o início da infecção) e possibilita a transmissão do vírus de maneira pré-sintomática principalmente nos 3 dias anteriores ao surgimento dos primeiros sintomas.
É importante salientar que muitas pessoas (entre 25-45% das pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2) não manifestam quaisquer sintomas da Covid-19 mesmo que durante toda a fase de transmissão da doença (são chamados de portadores assintomático da doença), dando origem às infecções secundárias assintomáticas. Esse tipo de infecção dificulta bastante o controle da doença durante uma epidemia.
A fase de transmissão dura desde o final da fase de latência até o momento onde o hospedeiro não é mais capaz de transmitir o patógeno a um novo indivíduo; ou seja, até o momento onde a probabilidade de infecção secundária atinge 0 % (Figura 1).
Como já fora mencionado, durante esse período o hospedeiro pode ou não apresentar sintomas, de maneira que uma porcentagem das infecções secundárias é pré-sintomática (área verde clara da Figura 1) e a outra é sintomática (área verde escura da Figura 1).
O hospedeiro que causa infecções pré-sintomáticas é chamado de portador pré-sintomático da doença; já a infecção que ele carrega é chamada de infecção subclínica.
No caso da Covid-19, estima-se que cerca de 40% de todas as infecções da fase de transmissão sejam causadas por portadores pré-sintomáticos; ou seja, ocorrem principalmente nos três dias anteriores ao início dos sintomas.
A fase de transmissão é um elemento muito importante para entender a dinâmica de infecção de um patógeno.
Quanto mais longa a fase de transmissão, maior será a área sob a curva de infecções secundárias (Figura 1); a totalidade dessa área (incluindo infecções pré-sintomáticas) equivale ao número básico de reprodução (R0, ou “R zero”), que indica a média de pessoas que serão infectadas por cada hospedeiro do vírus.
Se esse valor é maior que 1.0, a curva de pessoas infectadas durante a epidemia será ascendente; se o valor é menor que 1.0, a curva será descendente.
Para se ter uma noção, um R0 de 1.4 é suficiente para dobrar o número de infectados em apenas 9–10 dias.
A probabilidade de ocorrer uma infecção secundária é diretamente proporcional a carga viral do hospedeiro, de maneira que o pico da curva de probabilidade coincide com o pico de carga viral (Figura 1).
No caso da Covid-19, o pico de carga viral ocorre em algum momento entre os dois dias anteriores e um dia após o surgimento dos primeiros sintomas, período considerado ideal para realização do exame de RT-PCR (esse tema é discutido mais adiante).
O intervalo de geração corresponde ao período entre o início de uma infecção e o momento que o hospedeiro transmite o vírus para um novo indivíduo.
Em geral, consideramos que essa transmissão ocorre aproximadamente no pico de carga viral do hospedeiro, ou seja, no ponto onde há maior probabilidade de ocorrer uma infecção secundária (Figura 1).
Esse intervalo indica o quão rápido um vírus se dissemina em uma comunidade (isto é, em quanto tempo surge uma nova geração de indivíduos infectados). Em paralelo, o R0 indica quantas pessoas serão infectadas a cada nova geração.
Como é muito difícil ou quase impossível de se determinar precisamente o início de uma infecção, o intervalo de geração não é observável na prática. O mais comum é que tenhamos dados sobre o início dos sintomas e não sobre o início da infecção.
Dessa forma, uma maneira alternativa de se medir o tempo decorrido entre duas gerações sucessivas de indivíduos infectados é através do intervalo serial. Esse intervalo corresponde ao período entre o surgimento dos primeiros sintomas no hospedeiro e o surgimento dos primeiros sintomas no indivíduo recém infectado (Figura 1).
Em geral, o intervalo serial é usado como uma boa estimativa para o intervalo de geração. No caso da Covid-19, a média do intervalo serial foi estimada em 5.8 dias.
A fase de convalescença corresponde ao período entre o fim da fase de transmissão e a recuperação plena da doença (Figura 1). Durante essa fase a carga viral é ínfima e a resposta imune humoral do hospedeiro já está estabelecida: há uma redução gradativa de anticorpos IgM e um aumento da produção de anticorpos IgG em relação à fase de transmissão.
Qual o melhor momento para realizar os exames de RT-PCR e Sorologia?
O exame de RT-PCR detecta a presença do genoma viral em um indivíduo. Portanto, o melhor momento para sua realização é quando há maior presença desse material genético, o que coincide com o pico de carga viral do hospedeiro (Figura 1).
No caso da Covid-19, o pico de carga viral ocorre entre os 2 dias anteriores e 1 dia após o surgimento dos primeiros sintomas. Como não é possível prever os dias anteriores a esse fato, o momento ideal para realização do exame seria nas primeiras 24h após o aparecimento dos sintomas.
No entanto, a maioria dos sintomas da Covid-19 são comuns a outras enfermidades e situações do cotidiano (ex. dor de cabeça), o que pode gerar dúvidas quanto a sua causa.
Dessa forma, a fim de excluir a possibilidade que os sintomas decorram de fatores esporádicos (ex. alergia, privação de sono, alimentação deficiente etc.), recomenda-se que o exame de RT-PCR seja realizado no terceiro dia de prevalência dos sintomas.
Caso não seja possível, pode-se realizar o exame com bastante precisão até o sexto dia após o surgimento dos sintomas.
Já o exame de sorologia detecta a presença de anticorpos IgM e IgG em um indivíduo. Hoje sabemos que a produção de anticorpos IgM atinge seu pico durante a segunda semana (≥ 8 dias) após o surgimento dos primeiros sintomas da Covid-19, enquanto que a produção de IgG continua aumentando até atingir seu pico durante a terceira semana (≥ 15 dias).
Para saber qual o melhor momento para realizar o exame de sorologia é importante entender os dois critérios que são usados para determinar sua eficácia: sensibilidade e especificidade.
A sensibilidade diz respeito a capacidade do exame em detectar até mesmo pequenas quantias dos anticorpos específicos para o Sars-CoV-2; um exame altamente sensível implica dizer que a taxa de falsos negativos será pequena.
Já a especificidade diz respeito a capacidade do exame de detectar apenas os anticorpos específicos para o Sars-CoV-2; um exame altamente específico implica dizer que a taxa de falsos positivos será pequena.
No caso da sorologia para Covid-19, a detecção conjunta de anticorpos IgM/IgG possui sensibilidade de ~70% durante a primeira semana após o aparecimento dos sintomas (≤ 7 dias), enquanto que a especificidade é de ~99%.
Já durante a segunda semana (entre 8–14 dias) a sensibilidade é de ~96%, enquanto que a especificidade é 100%.
Por fim, o exame realizado durante a terceira semana (≥ 15 dias) possui tanto sensibilidade quanto especificidade de 100%.
Dessa forma, recomenda-se que o exame de sorologia seja realizado 14 dias após o surgimento dos primeiros sintomas.
Como todas essas informações são usadas para determinar o período de isolamento recomendado pela Organização Mundial de Saúde?
Dado que é muito difícil predizer o início da infecção por um patógeno, principalmente nos casos onde o hospedeiro primário é assintomático, nossa melhor informação advém do surgimento dos primeiros sintomas; é com base nessa informação que pautamos nossa estratégia de combate à doença.
Portanto, se tivemos contato com alguém apresentando sintomas da Covid-19, ou se nos expusemos a uma situação com alta probabilidade de contágio (ex. aglomerações), devemos ficar isolados por 14 dias.
O objetivo desse período é ficarmos atentos ao surgimento de algum sintoma da Covid-19, que pode aparecer a qualquer momento do período abrangido pela fase de incubação (mas principalmente no quinto dia).
Caso não venhamos a apresentar sintomas, é recomendado ainda que se faça um exame de RT-PCR e Sorologia ao final dos 14 dias para assegurar que você não é um dos portadores assintomáticos do vírus.
Caso você apresente sintomas da Covid-19, recomenda-se fazer um exame de RT-PCR no terceiro ou quarto dia após essa observação.
Por mais claros que os sintomas sejam (ex. perda de olfato), a confirmação molecular do vírus é importante para que os órgãos de controle tenham um panorama mais completo da epidemia, o que os auxilia na hora de formular políticas públicas (como por exemplo a priorização da vacina para uma determinada faixa etária).
Com ou sem a confirmação positiva do exame de RT-PCR, se você teve sintomas da Covid-19 é necessário que você fique adicionalmente mais 10 dias isolado, contados a partir do primeiro dia de surgimento dos sintomas e independentes da quantidade de dias em isolamento anterior a esse fato.
Esses 10 dias correspondem ao período sintomático da fase de transmissão (área verde escura embaixo da curva na Figura 1). Sabe-se que a maior parte das infecções secundárias ocorrem até o sexto dia após o aparecimento dos primeiros sintomas (principalmente nos dois dias anteriores e três dias após), mas há ainda resquícios de carga viral até o nono dia (OBS: há relatos de que o vírus pode permanecer em sobreviventes por até 37 dias após o início dos sintomas).
É importante notar que esse isolamento de 10 dias vale apenas para pessoas que não apresentaram casos graves da doença. Neste último caso, é recomendado que o paciente em estado grave tenha acompanhamento médico e fique isolado por período indeterminado até confirmação do desaparecimento do vírus em seu corpo.
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Como citar:
MARTINS-DE-SÁ, Diogo. Entenda a dinâmica de uma infecção viral: as fases de latência, incubação, transmissão e convalescença. Blog Diogo Martins de Sá. Brasília, 6 maio 2021, Disponível em: https://medium.com/p/83ac9688ca79. Acesso em: dia mes ano.
Referências
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